Há dias venho filosofando sobre uma coisa que me faz ver o mundo de outro ângulo: minha janela. Ela tem sido minha companheira nesses 14 meses no novo endereço. No antigo prédio (Edifício Prata), só via a traseira de outros prédios e a Catedral. Deixe-me explicar onde moro: Rua João Pessoa, próximo a uma loja que diz derrubar os preços das concorrentes e de uma Rádio AM, que marcou minha infância. Qual o paraibano não se lembra da voz forte e clara de Dom Luiz e seu “Bom Dia Irmão”.
Lembro-me que quando fui escolher o apartamento, e havia quatro vazios no mesmo andar, olhei da varanda para Rua João Pessoa, seus prédios e telhados cinza com musgo. Ouvi o barulho dessa Medina sertaneja e seus mercadores. Pensei que alugando um na frente poderia armar uma rede e ler por horas. Foi assim que conheci o mundo da literatura e filosofia. Balancei-me, até dormir com Machado de Assis, Maquiavel, Rousseau e Monteiro Lobato.
Mas quando vi a panorâmica que se descortinava para a João Suassuana e a Epitácio Pessoa, abri mão da rede e de tudo. Pronto! Tinha certeza que queria morar nos fundos. Um amigo, que foi visitar o que seria minha nova residência, me fez ver que o apartamento vizinho era melhor. No entanto, eu não arredei o pé daquela vista. Meu prédio fica num vale, o que aumenta meu campo de visão e o faz parecer mais alto.
Percebi que minha janela era praticamente uma moldura transmídia de interação entre redes: entre o mundo natural (serras ao fundo da cidade) e o espaço transformado (ruas, prédios e antenas). Calma, caro leitor! Eu explico. E, talvez, até sua relação com a janela de sua casa mude. Do alto do terceiro andar de um prédio de quatro e sem elevador, minha janela é meu primeiro refrigério depois de enfrentar os sete lances de escada.
Mas é também o espaço de observação das diversas camadas sobrepostas que formam a cidade de Campina Grande. De minha janela vejo o mundo que talvez um campinense da gema nem se dê conta, pois seu olhar já está acostumado com o espaço e não se deslumbra com a panorâmica estendida da Rainha da Borborema.
De minha janela vejo as palmeiras do Cemitério do Monte Santo, que embora seja santo, espero demorar a adentrar o terreno sagrado. Espio as serras ainda semi-virgens da penetração urbana que teima em transformar a paisagem rural. Enxergo, lá no fundo depois do monte que já não é tão santo assim, a linha da Chesf que traz energia da Bahia e espelha pelo cristalino da Borborema.
Vejo os contornos daquilo que antes era o buraco onde morava um sapo comestível, mas, como o famoso filme baseado na obra de Umberto Eco, tem um rosa com nome misterioso, transformou-se em Rosa Mística, embora ainda continue sem o cheiro agradável da flor e a mística não encante tanto assim.
Vejo o ônibus inconfundível e amarelo exagerado da São José a levar os vendedores das lojas de minha rua e da Maciel Pinheiro para suas cidades, subindo a Rua 15 de novembro, cruzando os distritos de Campina, de Lagoa Seca, Montadas, passando por Areial, até chegar a Esperança, percorrendo um caminho tortuoso de estrada não pavimentada, com seus solavancos.
Pois é, caro leitor, minha janela é republicana, a danada! Mostra a 15 de novembro quase toda e sua representação anti-imperialista. Mas ela também é meio militarista, pois se abre desde a alvorada até a hora de recolher as bandeiras do Quartel da Palmeira. Ela é religiosa. Mostra-me além da Igreja do Monte Santo, com sua torre moderna, à imponência do Convento São Francisco, com sua torre majestosa, seu relógio pontual e seu campanário vibrante. E ainda me apresenta a luminosidade do Seminário do Alto Branco.
Como ela dialoga com as comunicações, apresenta desde minha antena de internet via rádio, parafusada à parede externa, até a imensa torre de concreto armado de telefonia celular, lá no alto da Palmeira, já na divisa do bairro dos Cuités. Sem ser elitista, apresenta as inúmeras antenas de internet dos altos dos prédios, dos simples e dos da alta roda.
Da minha janela, vejo prédios novos sendo construídos numa velocidade impressionante, os velhos edifícios da região central e aquele outro abandonado e cheio de pichações da Rua João Suassuna, acima das lojas de peças para motocicleta. Ainda vejo os espigões lá no perder-de-vista do Santo Antônio, já se confundindo com o azul do céu e o cinza da serra, formando o pano de fundo.
Atrás da serra exatamente de onde se forma a Lua Cheia. De onde ela desponta para sua odisseia pelo céu, a derramar as paixões e influenciar os lobisomens, vampiros, os cachorros uivantes e os fluidos corporais dos loucos. É de lá, de trás das serras-sem-fim do Santo Antônio, que surge o sol que fulgura minha cara quando a cortina está aberta. É de lá, ainda, que nasce a chuva e o arco-íris, que decora minha paisagem quando o cara lá de cima está de bom humor e me quer feliz.
Mas minha janela também é indiscreta, como no filme Alfred Hitchcock. Ela me aponta, com seu olhar transparente, os churrascos que acontecem na cobertura do velho e combalido Edifício Abdallah, na esquina da Rua Padre Ibiapina (Antigo Beco do Açúcar), com João Suassuna. Dedura um casal que namora apaixonados na janela da mesma rua e ainda fica apontando estrelas, sem se preocupar se vão ou não ter verrugas. Tem dia que me mostra uma briga do mesmo casal, mostrando que a vida a dois é complexa.
Ela me mostra, com certa nostalgia, um casal de velhinhos lá no Abdallah, sentados em suas cadeiras de balanço conversando horas a fio: um assunto que parece nunca acabar. Voltam quase diariamente para um dedo de prosa, como se embaixo deles não passasse um mundo apressado: o vendedor de picolés que grita com seu diafragma de cantor de ópera ou mesmo o carro da campanha eleitoral com seu som estridente e mal educado. E os veículos quase a atropelar o transeunte que sai do Gulas’, após saciar sua fome.
Ela mostra as luzes amarelas de uma Campina baixa, com poucos prédios tentando arranhar o céu e salpicando suas luzes de um vermelho piscante em cima das caixas d’água. Ela não consegue me mostrar a Queen (boate GLBT), mas se estiver aberta, eu posso ouvir quase nitidamente os bate-estacas eletrônicos e os Bad Romance de Lady Gaga.
Porém, e sempre há um porém, quando ela quer que eu durma, se fecha com uma grossa cortina blackout. Para mim, apresenta uma face alaranjada; para os que a veem de longe, o cinza chumbo do bloqueador. Quando não quer que eu escute os sons estridentes e gasguitas das motos ou dos carros tunados que teimam em arranhar meus tímpanos, também se fecha e deixa que eu durma tranquilo e recupere as energias de horas e horas de queima de pestanas e aquecimento cerebral dos livros.
Isso tudo ela faz sem falar, porque se minha janela falasse... Ela contaria tantas histórias. Revelaria os segredos dos dois comércios que existem nas ruas João Pessoa e João Suassuna. Mas com ela não fala, apenas mostra as várias cidades que existem dentro de Campina, como as camadas de uma cebola.
Vou ali, passar um limpador de vidro para continuar vendo o mundo cristalino através de minha janela.