quarta-feira, abril 24, 2013

Sobre sapos e vendedores de guarda-chuva




Só existe uma coisa mais enigmática em dias chuvosos do que sapo: vendedores de guarda-chuva. É incrível a sagacidade desses profissionais. Nos dias de céu límpido e calor sufocante, não se vê esses seres misteriosos. Mas é só o tempo mudar e nuvens carregadas aparecerem ao leste para eles surgirem junto.

Eu suspeito que esses mercadores sejam extremamente atentos à previsão do tempo nos noticiários, anotando com precisão quando vai chover, o momento e a duração da chuva, e quando ela vai parar. Com todos os dados conferidos, correm a reservar o número exato de dispositivos que irão vender e mãos à obra.

Enquanto a chuva não vem, ficam ali camuflados no meio da multidão, à espera das primeiras gotas. É São Pedro ligar o chafariz celeste, pronto! Inacreditavelmente surgem com dezenas de modelos, tamanhos e formatos, como se os guardassem na cartola. São verdadeiros mágicos da rua. Em um malabarismo incrível, vão anunciando os modelos e os valores.

Àqueles que saíram de casa sem os dispositivos de proteção restam apenas duas alternativas: tomar um belo banho ou ceder aos encantos dos vendedores e adquirir um guarda-chuva que, provavelmente, esquecerão no primeiro destino.

De uma hora para outra, as ruas de cidades chuvosas se transformam em uma espécie de Londres, repletas de guarda-chuvas, e os moradores a andarem apressados embaixo de suas tendas ambulantes.

O mais engraçado de tudo é que parece que os mercadores das chuvas carregam a quantidade exata de dispositivos para a duração da chuva. Acabada a chuva, fim do estoque. Retornam no dia seguinte junto com a chuva. Se por ventura fizer bom tempo, ficam acompanhando a meteorologia, formando um novo banco de dados e contatando fornecedores.

Os mercadores torcem para que os compradores não levem tão a sério a previsão do tempo e voltem a comprar mais um dispositivo. Eu conheço pessoas que, por não acreditar na meteorologia, tiveram que adquirir três guarda-chuvas na mesma semana. Depois da chuva, um deles foi esquecido no metrô.

terça-feira, abril 16, 2013

Fé em deus e pé na tábua!



Desde criança, ouço falar que o Departamento Estadual de Trânsito (Detran) é a sucursal do inferno, uma bagunça total e onde ninguém se entende; que os funcionários são assim, que o serviço funciona assado e que é bom evitar aquele “antro”. Sempre achei que fosse exagero, mania de brasileiro de reclamar de tudo que é serviço público.

 

Tive o desprazer de comprovar, hoje, após iniciar o processo de minha carteira de habilitação, que tudo que foi dito ainda é pouco para descrever o Detran de Campina Grande. Primeiro de tudo: o local é mal sinalizado, falta informação e o serviço de pré-atendimento é realizado por autoescolas. Os astutos em negociação reinam no pedaço e conseguem coisas muito mais rápido. Segundo: os funcionários, há exceção, trabalham como se tivessem com raiva do universo e você fosse o responsável por ele estar assim.

 

Ao entrarmos naquele campo de guerra, havia uma fila enorme para se tirar fotos, mais de 50 pessoas para serem atendidas. Um aviso dizia “só atendemos 80 pessoas para o exame oftalmológico”. Noutro que está escrito “SENHAS AQUI”, não é lá que se retira as benditas fichinhas numeradas.

 

O representante da autoescola foi pegar os recibos em ordem em uma máquina de autoatendimento, distante do guichê que estava escrito “SENHAS AQUI” e pediu que esperássemos ser chamados na tela acima dos sete guichês, com apenas dois funcionários atendendo.

 

Uma funcionária com seu coque e cara de mal humorada era o arquétipo do barnabé padrão. Enfunada em seus óculos, recebia os papéis com ponta de dedos e conferia a hora em seu relógio.

 

Eu estava com a ficha 075. Quando chegou à 034 o “sistema caiu”. Um funcionário começou a berrar que só atenderia reteste. Não disse se o bendito programa voltaria ou ficaria como os funcionários, rodando de sala em sala. Umas cinquenta pessoas foram embora se queixando que o “sistema tinha caído novamente”. Duas autoescolas levaram seus clientes.

 

O tempo foi passando, passando... quase duas horas depois, o sistema volta. O mesmo funcionário, que não explicava o motivo da “queda”, começou a chamar as senhas. Outra atendente chegou para substituir a do coque. A última havia indo embora, saiu às 10h e poucos minutos. Nós que havíamos chegado por volta de 8h fomos sair depois de 12h apenas para nos cadastrar, tirar as fotos e colher as digitais.

 

Esta última etapa foi bem rápida e a funcionária era sorridente. Tirou a foto com uma câmera digital moderna. Para a coleta das digitais, usou um escâner moderno e um suporte também digital para colher nossa assinatura.

 

Antes de sair, presenciei uma discussão de uma funcionária do departamento com um senhor sexagenário, como disse. Ela queria furar a fila e colocar um protegido seu antes dos outros. Ele não aceitou e houve bate-boca. Outra funcionária acalmou os ânimos.

 

Aqui ali, alguém dizia que havia recebido uma proposta de pagar R$ 1.400,00 e receber a carteira sem nem fazer os testes. Um colega de empreitada disse que tinha recebido a proposta, não de um funcionário, para ter sua habilitação por um pouco menos que isso, só não aceitou porque ainda achou caro, “mas se tivesse o dinheiro teria topado”, pois ficar naquela fila e tomar uma maçada daquelas...

 

Não é de se estranhar que nas ruas o trânsito seja o caos que é. Se o departamento de trânsito é essa bagunça. Saí de lá com a seguinte constatação: o número de autoescolas e despachantes prolifera cotidianamente porque ninguém quer passar por maçadas assim. Se a burocracia é daquela forma, não se admira que tanta gente use do jeitinho brasileiro para conseguir sua carteira de habilitação.

 

Se as regras de trânsito e a legislação devem ser aprendidas para manter a civilidade, na realidade das ruas “a democracia e o bom senso ali requeridos se invertem, e a maioria descobre, sob pena de ser sistematicamente agredida ou perder a vida”. As ruas pertencem aos que estão dentro de seus respectivos veículos ou montados em suas motos. O resto é perfumaria.


 É crucial obter sua carteira rapidamente, fazer uma prece ao sair de casa e, como afirmou Roberto daMatta, “Fé em Deus e pé na tábua”. Salve-se quem puder. Isso explica por que o trânsito se torna essa máquina implacável. A civilidade fica apenas no papel; na prática, as estatísticas de morte e mutilações resultantes de motoristas que aceleram, independentemente da fé em Deus e de como conseguiram a carteira, falam por si mesmas.

segunda-feira, abril 08, 2013

Não façamos na vida pública o que fazemos na privada




Como todo mundo nascido no interior no fim da década de 1970, o contato com o telefone não era frequente. Ainda na década seguinte o aparelho estava presente nas casas de uma pequena elite. Os orelhões eram raros. Em uma cidade como a minha, com menos de 10 mil habitantes, não havia telefone público nas ruas. Isso só foi acontecer na década de 90.

 Nas casas onde havia telefone (mais cara que um carro, pois a linha era comprada como ação da Telebrás e demorava horrores para chegar), havia uma sala específica para o aparelho. Existia uma mesinha, acompanhada com cadeira de veludo e uma agenda com os poucos números anotados. No disco do aparelho, uma trava que não permitia ligações desnecessárias. A chave era escondida.

Os postos de serviços telefônicos eram a salvação dos mais pobres. As ligações eram avisadas por mensageiros. Ali faziam e recebiam ligações e pagavam por minuto. Os diálogos eram mantidos nas cabines de conversa quase em sussurros. Eram rápidos, pois muitos também queriam conversar com os parentes distantes. Falava-se o essencial e baixíssimo.

A intimidade das conversas se assemelhava aos temas tratados nos confessionário. Ninguém bradava aos quatro ventos o que fazia ou deixava de fazer, muito menos as intimidades. Vontade de falar sobre isso com os esposos/as, namorados/as e noivos/as ausentes não faltava, mas eles sabiam que estavam em público.

Com a privatização do Sistema Telebrás, em 1998, o telefone se popularizou e as pessoas perderam a noção do ridículo. Nos dois anos seguintes, já havia pessoas com celulares gritando aos quatro ventos o que faziam ou deixavam de fazer. Depois os aparelhos e mal educados foram tomando a praça, a igreja, os cinemas e as salas de aula.

Hoje, contam suas intimidades, aos berros, nos bancos, nos transportes públicos, nos corredores das universidades. Não há mais controle. Já ouvi e vi esses finos donos do mundo atenderem seus aparelhos nas salas de cinema, no teatro e nos templos, como se fosse o mais corriqueiro dos comportamentos sociais.

Esses dias voltando de minha caminhada, quando passei por uma rua no centro de Campina Grande e uma jovem conversava (possivelmente com seu namorado) e narrava detalhes do que fariam quando ele chegasse.

Na sacada do terceiro andar do seu prédio ela descrevia as preliminares com a maior naturalidade.  Ia falando com uma voz sensual que parecia o telessexo de antigamente. Em minha frente, para um jovem rapaz e ficou a ouvir aquela conversa. Ao sair do local, tive a suspeita que o rapaz começou se acariciando prestando atenção àquele coito verbal.


A jovem continuou a história como se nada acontecesse. Uns  300 depois metros eu ainda a ouvia falar. Ria alto e chamava o interlocutor de safado com a mesma naturalidade que fazia quando estavam entre quatro paredes. Para ela a rua era sua cabine prive; a sacada o tempero da relação.

segunda-feira, abril 01, 2013

Cada um tem a viagem que seu coração permite




Há pessoas que adoram viajar; se pudessem, voltariam para casa apenas para trocar as malas, levando uma vida em eternas escalas aeroportuárias. Eu, por outro lado, adoro viajar não apenas para reencontrar pessoas e lugares queridos, mas também para desbravar mares nunca navegados. Sou daqueles que acreditam que navegar é preciso, mas que viver também é preciso. Viajar é a arte em que a vida e suas experiências ditam o ritmo do levantar das velas.

Entretanto, existem pessoas que preferem o conforto de casa, onde tudo que é novo é assustador. Estão sempre voltando para sua caverna interior com medo de explorar o universo, esse mar tenebroso, uma armadilha constante. Elas têm horror a novidades, e a neofobia, rejeição de tudo que é novo, é uma prisão sem muros. A cada convite, surge uma desculpa: um parente que não pode ficar só, um animal desacompanhado, o desconforto da viagem ou, às vezes, falta de capital.

Há dois meses, tínhamos planejado uma viagem a Natal-RN. Eu, a parte que me completa, e um casal de amigos viajaríamos para rever amigas que amamos muito. Elas já são consideradas da família, pois os laços fraternos não são apertados com fitas de DNA; aprendemos a amar primeiro o espírito e depois os corpos. Havia saudade acumulada desde o réveillon que não passamos juntos.

Viajar é planejar, calcular partida e chegada, pensar em como nos comportaremos na casa dos anfitriões. Carregamos o ideal da perfeição e da "maravilhosidade" das viagens. Viajar é estar juntos, pensar muito e não ter tempo para realizar tudo. É ter uma agenda e descobrir que muitas coisas saem diferentes do planejado, sem nos angustiar pelos imprevistos. Assim é a vida. Por isso, voltamos, retornamos apenas para as coisas que não temos. A isso damos o nome de saudade.

Há momentos em que acreditamos que não aproveitamos tudo, esquecendo de comemorar as coisas que deram certo, as gargalhadas espontâneas, as confidências trocadas, o cineminha e uma refeição compartilhada. Uma pessoa muito importante para mim costuma dizer que "a vida é algo que acontece quando estamos pensando no futuro".

Enquanto o casal campinense assistia a um filme, fomos a uma livraria, escolhemos os livros e tomamos um café para passar a limpo a fofoca antes de voltarmos para casa. Vi um livrinho na estante de autoajuda chamado "Pare de Reclamar e Concentre-se nas Coisas Boas". Não o li, mas saí dali pensando no título.

Despedimo-nos das anfitriãs e pegamos a estrada de volta para casa. Olhei para o lado direito da BR-101 e vi um pôr do sol lindo. O céu, que estava de um azul sem nuvem, começou a assumir um matiz amarelo-alaranjado, e o crepúsculo começou a se formar abaixo daquele amarelo encantador.

Do sol, saíam quatro raios azuis, aurora boreal riscando o céu, mostrando que cada ato é efêmero, como tudo na vida. Fazendo-nos lembrar que tudo passa, mas valeu a pena ter vindo. Apenas a memória é eterna e cristaliza os atos. E o sol sussurrava por trás de uma embaúba quase desfolhada: "vou agora, mas amanhã eu volto. Assim é o mundo: eterna transformação".

Olhei para aquela tela que nem Claude Monet, com sua "Impressão, Nascer do Sol", seria capaz de me passar uma mensagem tão clara. Maravilhado, apertei a mão direita da parte que me completa e me lembrei de "Pare de Reclamar e Concentre-se nas Coisas Boas". Semeie um jardim em minha alma e percebi que as flores não apenas nascem na primavera; o outono é um exímio jardineiro. Cada um tem a viagem que seu coração permite.