segunda-feira, janeiro 02, 2012

Como transformar uma mentira em verdade


1h15min, um forte estampido ecoou apartamento adentro e barulho de vazamento. Acordo atordoado pensando que fosse alguma coisa ou alguém dentro de casa. Levanto-me para me certificar se tinha sido alguma coisa no apartamento que passávamos o final de semana em João Pessoa. Quando olhamos para a rua, descobrimos que tinha acontecido uma forte batida de um Fiat Pálio prata em um tronco de árvore, o barulho de vazamento era do motor superaquecido.

Ficamos esperando as vítimas saírem do carro e torcendo que não tivesse ocorrido nada de grave com elas. O para-brisa do lado do motorista estava quebrado, mas não estilhaçado. Apenas com uma marca de impacto. O motorista levanta cambaleante e sai do carro, coloca a mão na cabeça para se certificar se não sagrava, olha o estrago do carro novamente. Frente completamente destruída, a uns trinta centímetros do troco onde bateu. Apenas uma pessoa no veículo. Nenhuma vítima grave.

Outra vez, o motorista leva à mão a cabeça, não apenas para se certificar se sangrava, porém com sinal e desolação. Não acreditava no acontecido. Ainda sem os chinelos e cambaleante, ele retira o celular do bolso e começa a fazer ligações andando de um lado para outro. Liga para um amigo, diz o que aconteceu fala um monte de palavrões, diz a localização da colisão e pede para que o amigo venha até o local do acidente.

A uns dez metros da esquina das Ruas Professora Maria Sales com a Izidro Gomes, vizinhas ao Mercado de Artesanato de Tambaú estava o motorista com o celular na mão ligando para outro amigo e contando o sinistro. Novamente alguns palavrões como se esses fossem interjeições. Ao ver o primeiro amigo, José Mário, assim o interlocutor o chamava, começou a relatar o que aconteceu (nosso apartamento era no primeiro andar e pela janela ouvíamos tudo).

De acordo com o motorista, que descobrimos cambaleava não pelo impacto da colisão, mas por estar alcoolizado, vinha em alta velocidade cochilou e bateu no tronco, não deu para frenar. Quando abriu os olhos já estava com a frente do carro no que tinha sido uma árvore. Não usava sinto de segurança por isso a colisão de sua cabeça no para-brisa. Se o carro tinha air bag não funcionou.

O primeiro amigo começou repreender o condutor. Dizia que já tinha pedido para ele ir para casa dormir, mas teimoso que era, “se achando o machão, o forte” não aceitou.  Deu no que deu. Agora ele precisava de alguém para assumir que estava dirigindo, pois, por estar embriagado, o seguro não cobriria os prejuízos. O condutor disse que o carro era da mãe e que o seguro estava no nome da irmã, mas àquela hora, perto de 1h30min da manhã, não iria ligar para a titular da apólice.  Não a incomodaria. O amigo mais uma vez o repreendeu, dizendo que ele preferia ter o prejuízo a contar para a irmã. O condutor não sabia o número da seguradora. Ligou para o serviço de informação, de seu celular. Deram-lhe o número ele ligou para o reboque. O amigo insistia na versão de outro motorista.

Nesse ínterim, chega um segundo amigo. Ele conta a mesma versão do sono, alta velocidade e embriaguez. Parecia que eles estavam bebendo antes, pois o primeiro amigo contou que o tinha visto “alterado” e o havia mandado embora, mas o condutor não aceitou e “deu nisso”. Insistia em ter que chamar uma pessoa sóbria para assumir que conduzia o carro. Começaram a discutir alto. Ligamos para a polícia e informamos o ocorrido. 

O telefonista fez um monte de perguntas, queria saber a localização exata do acidente, quantas pessoas estavam envolvidas e que tipo de carro, o que eles diziam na discussão. Como eles estavam muito próximos de nós poderiam ouvir o que eu falava. Preferi desligar a ter que ficar respondendo ao policial.

Uma amiga que estava hospedada no quarto ao lado foi ao nosso e começou a falar que ligássemos para a polícia.  Eu disse que já tinha feito, mas liguei novamente, agora de outro telefone móvel e passei para ela. O policial que atendeu disse que já tinha sido informado e que a viatura estava se dirigindo para o local do acidente.

À 1h48min chega a viatura número 1048 do BPTRAN. Enquanto o policial falava com o condutor e o segundo amigo, o primeiro amigo do motorista tirava latas de cerveja e energético de dentro do carro, derramando-os num canteiro circular ao lado do Mercado de Artesanato, numa rápida eliminação de provas. Assim que o policial pediu documentos do carro e do condutor do veiculo este disse que conheci os superiores dos policiais e disse o nome do coronel.

Minutos depois de a polícia chegar, estaciona do lado do carro acidentado uma viatura da TV Tambaú, afilial do SBT. Saem do carro um repórter, um cinegrafista e o iluminador. Começam a fazer imagens das placas de identificação das ruas, da placa do carro envolvido no acidente e vão conversar com a “vítima” do acidente e com os policiais. Ao dar o depoimento para a Televisão e para a polícia o discurso mudou completamente.

Agora, segundo o condutor do veículo, ele foi trancando por indivíduos que vinham em alta velocidade. Para evitar danos maiores, inclusive com a própria vida, saiu da rota, subiu calçada e bateu na árvore. Nada de dizer que vinha em alta velocidade, sozinho, embriagado e sem cinto de segurança.

O policial tomou o depoimento, anotou a placa do veículo, certificou-se do endereço, conferiu as placas das ruas, pediu para o condutor assinar, cumprimentou-o, fez o mesmo com os dois amigos e foi embora, dizendo que ele fosse a um hospital, pois podia ter algum problema mais sério, visto que havia batido a cabeça e estava tossindo muito. Logo depois, a TV registrou a história de uma vítima de perseguição de trânsito, e os "meliantes" perseguidores evadiram do local. A encenação virou realidade televisionada, pois o repórter colheu as informações dos policiais, como manda as regras do bom jornalismo, ouvir os dois lados da história.

Em outro momento da história, o funcionário da seguradora fazia vista grossa enquanto o primeiro amigo retirava uma caixa de isopor com bebidas, algumas garrafas e latinhas que pareciam cerveja do porta-malas do carro da vítima e colocava no seu.

No final, o motorista irresponsável ainda pediu dinheiro para dar ao porteiro do Ed. Mar da Galileia, onde estávamos hospedados, pois ele tinha sido o primeiro a socorrê-lo e poderia ser testemunha, confirmando a história que foi ensaiada ainda ali na rua e propagada pela televisão, como se fosse a mais pura verdade: motoristas responsáveis sendo vítimas da violência do trânsito das cidades brasileiras, bárbaros sem educação (!) e marginais que os fecham nas ruas.

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