segunda-feira, maio 13, 2013

Os dicionários de Deus



Tenho um ímã para atrair pessoas diferentes. Não sei se é porque também sou diferente ou por não ter o hábito de repelir os estranhos que se aproximam de mim, mas a verdade é que os atraio. Mais dias, menos dias, encosta uma criatura dessas e me conta predileções e incômodos.

Em "Eu vi a máquina voadora", poema de Bráulio Tavares musicado por Silvério Pessoa, descobrimos que “os loucos e os visionários são os dicionários dos sonhos de Deus”. Então, quando um dicionário desses se abre, não perco a oportunidade de ler os mistérios do mundo. Pelo menos eu tento.

Quarta-feira, no terminal de integração, um vocabulário falante desses abriu-se ao meu lado e quase não parou de falar. Ela, uma senhora morena, alta e sorridente, olhou para mim e (sem apresentação) contou que havia feito uma compra a prestações. O vendedor combinou de passar um mês depois para pegar o primeiro pagamento e não foi.

Fiquei impressionado ao saber que ainda existem prestamistas atuando nos bairros de Campina Grande. Pensei que tivessem sido extintos como as cadernetas de fiado, com o advento dos cartões de crédito. Fiquei dirigindo a informação...

Ela não esperou resposta. Como se eu morasse dentro de sua cabeça e soubesse da história, disse que precisou do dinheiro para outro pagamento, um creme que havia comprado para diminuir a barriga e alguns centímetros da cintura. “O creme é bom, viu? Perdi mais de 5 quilos”. Não duvidei.

Enfatizou que nunca tinha velhacado ninguém. Que sempre morou de aluguel, mas não atrasava, comprava fiado e pagava direitinho. A única coisa que tinha para zelar era o nome e não ia sujar. Agora achava um absurdo um vendedor que não veio no dia certo e agora a ameaçava de morte...

“Pois foi, meu filho”, como se eu soubesse de alguma coisa. “chegou perto de mim, ficou fazendo gestos e querendo levantar a camisa como se tivesse uma arma. Eu não nasci de sete meses, não. Chegasse pedindo o dinheiro dele e não me ameaçando”.

Estava apavorada. Sabia que eu não ia resolver seus problemas, mas continuou listando-os por quase 20 minutos. Contou-me, sem que eu a interrompesse uma única vez, boa parte de sua história. As pessoas que estavam ao nosso lado pensavam até que fôssemos parentes. Falava comigo e conferia se o coletivo se aproximava.

Quando o ônibus chegou, despediu-se educadamente. Acenou e subiu na lotação. Sentou-se perto da janela e silenciou. Queria apenas colocar para fora suas angústias. Sem esperar resposta, foi cuidar dos seus afazeres. Não sei onde mora e nem deu tempo de saber seu nome. Foi-se com o mesmo mistério que chegou.

Ela ia desaparecendo, e eu me lembrando dos primeiros versos do poema de Bráulio: “Saber que quem pensa não é a cabeça/Por mais que pareça saber computar/Os nervos do corpo são cabos de modem/Que sabem e podem sentir ou pensar”.

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