terça-feira, fevereiro 28, 2012

Viver é caminhar em um grande jardim



Não havia pressa em seu caminhar e, acredito eu, em seu pensar. Usava uma saia com flores pequeninas e uma estampa meio ocre. Uma blusa branca completava suas vestes. Não usava tênis, mas um sapatinho Moleca, já bastante gasto. Na mão esquerda um terço de contas de madeira. Uma cruz pendia dele já quase se encostando às plantas rasteiras do parque.  Numa espécie de braile místico dedilhava uma oração.

Caminhava sozinha, seu andar destoava dos demais que passavam apressados, com suas roupas apropriadas e hormônios que pululavam dos corpos suados. Ela não; não vi se usava meias, mas estava de espírito completo. Diminuí meu ritmo para observá-la. Suas mãos encarquilhadas mostrava que havia perdido todos os traços simpáticos da mocidade, mas carrega com ela toda a sabedoria de uma vida.

Não vi seu rosto, mas a partitura corporal que ela carregava dizia que ali havia passada toda uma sinfonia de boas coisas. A memória muscular que levava consigo falava que ainda tinha muita vida e vontade de viver com alegria e em comunhão beleza do universo.

A corrente de gente que passava não alterava seu ritmo. Ao mirá-la mais de perto imaginei minhas duas avós. Fiquei a imaginar o que aquelas mãos belamente enrugadas já havia feito? Teria feito canteiros de flores e hortaliças ou regado uma goiabeira na qual os netos travessos armaram um balanço e subiam para colher as frutas bicadas pelos pássaros? Teria usado agulhas para bordar enquanto contava histórias de “malassombro” e lobisomem nos dias de faltaram energia?

Será que fazia café gostoso como vovó Maria e o colocava em xícaras com pires de porcelana branca com florezinhas amarelas, dependuradas em louceiro antigo verde com três gavetas? Teria bordado o enxoval de vários filhos? Não sei dizer nem perguntei.

Apenas posso dizer que caminhava com uma sabedoria budista. Antes de dobrar a curva para os sanitários, parou um tempo em frente uma figueira que tem uma plaquinha escrita “Ficus retusa”. Da forma como recitava suas preces silenciosas, se sentasse debaixo da figueira atingiria o Nirvana mais rápido que o Buda.

Aquele imenso Jardim era metafórico para sua caminhada: Parque da Criança. Apenas que tem o coração de criança poderia ter aquela serenidade. Eu que venho correndo, reclamando de falta de tempo, de tanta coisa...  Reparei que ali ela caminhava em voltas de 1 km, não sei quantas, olhando o imenso jardim e suas plantas sem pensar como os outros aproveitavam o espaço nem se maldizer dos anos que carregava.

No cesto de sua existência deveria ter muitos cajus, como os indígenas calculavam suas vidas, em seu calendário primitivo, tem como base as safras e as colheitas.

Às vezes penso mesmo que a vida é uma parábola: no duplo sentido. Tanto a curva plana com os pontos equidistantes de um ponto fixo dito foco e de uma reta fixa, quanto à narrativa alegórica que evoca, por comparação, valores de ordem superior e encerra lições de vida e pode conter preceitos morais ou religiosos.

Aquela senhora representa todas as avós. Onde ela estiver é para ela que escrevo essas poucas linhas. É com pessoas simples, sem nome, sem muita farofa que aprendo diariamente. Não sei se sabe preparar doce de mamão ou se no quintal tem jabuticabeira, mas foi com ela que vi toda minha infância. Vieram-me todos os quintais e jardins de minha vida.

É com a humildade dessa gente (do latim humus > “filhos da terra”) que venho aprendendo cotidianamente. Através dela lembro meus avós, maternos e paternos, que tiveram a qualidade daqueles que não tentam se projetar sobre as outras pessoas, nem mostrar ser superior a elas. Essa virtude que dá o sentimento exato da cordialidade, do respeito, da simplicidade e  da honestidade.

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