quarta-feira, março 17, 2010

Roupas ritualísticas e a invisibilidade dos não-cidadãos


Em uma palestra para alunos do ensino médio de Campina Grande-PB, em  2007, o professor Luiz Barco, titular da ECA – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – disse que Deus não deveria ter dado ouvidos para os médicos. Na ocasião todos riram. Ele reclamou do Criador em ter dado a audição a todos, já que alguns “acabavam se tornando médicos e não ouvindo os pacientes”, suas dores, seus nomes.

Antes de ontem à noite, cheguei à conclusão que o Criador não deveria ter dado olhos aos homens e mulheres de jaleco: eles não vêem as pessoas. É como se elas (pessoas simples) fossem opacas ou transparentes. Explico. Estava na recepção do Hospital Reginal, esperando uma colega que tinha sido picada por um escorpião, e vi como o “pessoal de branco” fingia não ver aqueles infelizes que ali agonizavam. Não que eles tivessem que atender de imediato e resolver seus problemas. O que me incomodou foi a forma como eles, médicos-professores de uma respeitada instituição (e seus alunos ) não olhavam para as pessoas nem de relance. Ignorava-os por completo. Esbarravam quase, se elas não saíssem da frente...

Mas, alguns de vocês podem estar perguntando o porquê de eu trazer a fala de Luiz Barco e história de alunos para discutir sobre a “invisibilidade” social. Aí é que está o xis da questão. É que naquele ano, ouvindo o professor, estavam estudantes secundaristas, com sonhos e dúvidas do vestibular. Ontem   eram os futuros médicos  lá no hospital e, por sermos, nós “transparentes” não se deram ao luxo de ao menos observar que eu os analisava. Não que fiquei triste ou magoado por isso. A revolta era com o não reconhecimento daqueles anônimos. 

Voltemos, pois, à questão da opacidade social. Segundo o sociólogo Jessé Souza, em “A gramática da desigualdade brasileira”, a diferença social brasileira tem a ver com a Revolução Burguesa e com ideologia passada para toda sociedade racional e  ocidental. Eu explico. Para ele, a partir dessa filosofia o sujeito passou a ser respeitado pela seguinte tríade: capacitação, salário e posição, não mais pelos títulos nobiliárquicos. Quem não fosse capacitado, não teria um bom salário, logo, não ocuparia uma posição importante na escala social. Dessa forma, o reconhecimento, como indivíduo e sujeito social, viria da tríade.  

Já os “não-capazes”, eram alijados, considerados inaptos para o processo, não eram seres racionais, eram primitivos, como os indígenas, ou atrasados, a exemplo de sociedades arcaicas, como as orientais.  Não chegavam ao topo porque não queria, eram uns preguiçosos. Também não tinham ambição. Por isso não se enquadravam na nova sociedade, racional, organizada e capitalista. Esse não-reconhecimento do outro serviu para justificar a desigualdade e classificar as pessoas em cidadãos e não-cidadãos, a ralé, os caipiras, os desordeiros, os beradeiros, os de baixo e tantas outras denominações. O pior de tudo é que isso foi sendo “naturalizado”, como a idéia do sol nascer toda manhã e, à noite, surgirem as estrelas. Ninguém questionou.  Da tríade, capacitação, salário e posição surgiram as profissões reconhecidas pela sociedade.  E as profissões dos “intocáveis”.

Os bons partidos eram os que agregavam os valores trinos. Assim sendo, os outros são apenas corpos, mão-de-obra, ou proletários, que têm sua prole (filhos), operários no futuro. Seres invisíveis e sem nome, o porteiro, a empregada, o faxineiro, o pipoqueiro, o engraxate, o gari. Já os de destaques são “Doutor Fulano de Tal”, como nome e sobrenome. Essa diferenciação é bem menos pelo que é dito do que é demonstrado.  Um meneio de cabeça, uma subserviência...

Pois bem, é com base no exposto acima que os médicos ou as pessoas que vestem “roupas rituais do cargo” se sentem reconhecidos socialmente. Primeiro, ficou no inconsciente coletivo que eles têm quase controle sobre a morte, pois curam as doenças. Daí a se sentirem “quase deuses” foi um pulo. Claro que existem bons profissionais que respeitam os seres humanos, a exemplo de Zilda Arns (criadora da Pastoral da Criança) Dráuzio Varella (voluntário no Carandiru, maior prisão da América Latina desativada em 2002)  ou tantos anônimos que compõem  o exército dos Médicos Sem Fronteira.

2 comentários:

  1. Comungo com suas ideias, pois somos sempre vítimas de "profissionais de branco" sem um pingo de dignidade.Fico a pensar se não seria o caso de também não termos boca....Para que falar-lhes se não nos escutam?Ainda bem que ainda há muitos deles dignos da profissão que abraçaram.Encontrá-los é que é tarefa não muito fácil?
    Ceu

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  2. Infelizmente desses bons profissionias que vc citou, só julgo de boa índole verdadeiramente a primeira: Zilda Arns (criadora da Pastoral da Criança), pois o segundo Dráuzio Varella (voluntário no Carandiru, maior prisão da América Latina desativada em 2002) é capaz de fazer testes em animais en rede nacional (no fantástico) e isso pra mim denota uma pessoa capaz de outras atrocidades por trás da câmeras.Então, o animal tem boca , mas não fala... onde já vi isso?? Ah, lembrei: no comentário anterior "Fico a pensar se não seria o caso de também não termos boca....Para que falar-lhes se não nos escutam?", daí fica uma dúvida: ql a diferença entre os "transparentes" e o aninais? Eu respondo: ambos têm boca e não são ouvidos, mas apenas um deles sabe digitar!

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