Toda manhã, Lea acordava cedo. Abria as janelas e, ainda com
a roupa de dormir, fazia uma série de alongamentos. Banhava-se, escovava os
dentes e ia para o desjejum. A vida estava diferente desde que tinha mudado sua
rotina e alimentação. Acordava cedo, não se lamentava, comia melhor e tinha
energia para o dia todo.
Ao abrir a janela, numa manhã ensolarada, viu dois olhos
negros e brilhantes, olhando-a da janela do prédio ao lado. Tomou um susto e se
escondeu atrás da parede. Olhou novamente, os olhos emoldurados por uma
cabeleira cacheada ainda estavam ali, timidamente. Ela tremeu, quis gritar, seu
coração acelerou.
Viu os dentes e o nariz. Pareceram-lhe belos. Que loucura!
Ela estava sendo observada. Gostou da sensação. Passou o dia pensando na cena.
À noite, quando voltou para casa, olhou discretamente para a janela, nada viu,
além do escuro interno e o reflexo na lua no vidro da janela e um varal na área
de serviço.
Na manhã seguinte, antes mesmo de sua série de alongamentos,
trêmula abriu a janela, afastou a cortina e lá estavam os olhos misteriosos. Se
viram e tomaram um susto recíproco. Voltaram a se esconder. Não houve sorriso
ou aceno: apenas mistério.
Quando voltou do trabalho, nada além de breu e uma toalha
estendida na área de serviço. Foi dormir com uma roupa mais sensual. Até passou
perfume. Adormeceu agarrada com o travesseiro pensando nos olhos misteriosos.
Não se sentia exibicionista nem acusava os olhos negros de ser voyeur.
Sentia-se desejada e isso era bom.
Na manhã seguinte, uma leve chuva. A janela estava fechada.
Não havia olhos negros nem os cabelos encaracolados. Nos dias seguintes, nem
toalha mais na varanda da área de serviço. E cada vez mais, seus dias ficaram
escuros como aqueles olhos. Acreditava que os olhos negros haviam se mudado. O
apartamento ao lado não tinha mais luz, plantas ou roupas na janela. Voltou-se
para si.
Retomou os alongamentos e as práticas de Yoga, mergulhando
novamente na sua rotina diária. Os olhos que havia notado quase um mês atrás
pareciam ter se dissipado de sua memória. Após concluir seu ritual matinal
revitalizante, dirigiu-se à cozinha. Ao abrir as cortinas do quarto, permitiu
que a luz matinal banhasse o ambiente, desviando momentaneamente a atenção para
o movimento lá embaixo, onde uma buzina ecoou. No instante em que ergueu os
olhos, seu coração deu um salto.
Após reencontrar os olhos negros, os cabelos cacheados, o
nariz desenhado, e o sorriso que enviou arrepios por todo o seu corpo, ela
sentiu-se renovada. Não trocaram palavras, mas aquele breve encontro foi o
suficiente para impulsionar seu ânimo e criar uma antecipação para o retorno ao
lar.
No painel da portaria, acima do interfone, encontrou apenas
um cravo vermelho e um número de telefone. Sem hesitar, levou ambos para casa.
Ao chegar, correu para a janela e notou um craveiro com uma flor a menos.
Intrigada, ela se questionou se a vida teria lhe sorrido
através daqueles olhos. A incerteza a acompanhou até a hora de dormir, que,
pela primeira vez em muito tempo, demorou a chegar. Atrasou-se no despertar
pela manhã, o corpo ressentindo-se do sono tardio.
Ao acordar com o barulho de um caminhão, correu para a
janela e percebeu uma movimentação no apartamento vizinho. Contudo, não avistou
os olhos negros, frustrando-se. Quebrando a rotina de meses, desceu para
descartar o lixo e, ao olhar através do portão da portaria, deparou-se com o
vaso que havia notado anteriormente, agora faltando duas flores e uma mensagem
intrigante: "Me adiciona".
Optou por não ir trabalhar, inventando uma desculpa de
última hora. Uma febre súbita a acometeu, só cedendo quando o carro da mudança
se afastou. Na janela, viu a segunda flor que faltava no craveiro que havia
colocado para tomar sol.
Embora tentada, resistiu à adição do número. Preferiu que o
mistério persistisse, deixando para a imaginação o destino daqueles olhos e
focando nas possibilidades positivas que a vida poderia oferecer.